MEDICINA/EVIDÊNCIA

“Um dia, vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter” (Super Homem – A canção – Gilberto Gil)

Um dia acreditei que “Não existe mulher difícil. O que existe é mulher mal cantada”. E fui correr atrás: exercitei a voz e o timbre, procurei melhorar o ritmo e a afinação, e até fiz aulas de canto pra melhorar a performance, só por acreditar naquela frase. Só desisti quando descobri a verdade escondida por trás dela, para – enfim – padecer de um arrependimento monstro.
Quando morei em algumas metrópoles com altos índices de criminalidade, sem ter nenhuma segurança pra andar nas ruas, acreditei que “Bandido bom, é bandido morto”. O conceito parecia lógico: quanto menos marginais nas ruas, menor o perigo, e a tranquilidade que reinaria naquele mundo permitiria andar tarde da noite por qualquer rua. Acreditei nisso por algum tempo, até que o mesmo arrependimento monstro também se aposse da minha alma.


No universo das frases feitas havia outras que rondavam minha mente: “Os gays são ótimos para fazer maquiagem, decoração e vestidos”, “todos judeus são ricos”, “os espanhóis são muito teimosos”, ou, “quem não suja na entrada, certamente vai sujar na saída”.

Elas permaneceram até que a maturidade me contasse que essas frases infelizes, são espelhos de uma sociedade doente. Descobri também que aqueles que as proferem protagonizam são os indivíduos que povoam o universo descrito por Nelson Rodrigues, onde toda generalização é burra.
Um pouco mais tarde, vim saber que quem escapa de Nelson, vai acabar pertencendo ao universo de um outro Rodrigues, o “doutor” Nina, expoente do racialismo dogmático e pai do malfadado determinismo racial no Brasil. O médico queria pretensiosamente dourar o preconceito com o cientificismo capenga que rasgou o mundo no final do século XIX e início do século XX. É do “racialista vacilante”, como o chamou Filipe Pinto Monteiro em artigo de 2020 (Topoi – RJ – 21 (43). Jan-Apr 2020) um dos primeiros registros da predominância branca do Sul, contra o atraso social fruto de uma pretensa miscigenação Nordestina.
Quando o ciclo da cana de açúcar se encerrava, diminuindo a riqueza dos arcaicos e preconceituosos coronéis, para dar lugar aos barões do café, verdadeiros novos senhores dos imigrantes, foi mais fácil para o Dr. Nina Rodrigues deixar de compreender as leis da economia moderna, do que esquecer a tradição escravocrata. O que choca, porém, é observar que, mesmo tendo transcorrido mais de um século, suas ideias ainda encontram eco num mundo que teima em justificar preconceitos.
Os meus arrependimentos ante as frases e conceitos que um dia acreditei serem verdadeiros vieram antes que eu pudesse levar para as urnas os frutos daquele profundo desconhecimento sociológico, cultural, civilizatório e moral, tão próprios da imaturidade. Ainda bem que as mulheres continuam a ser difíceis para quem não as entendam como indivíduos e que os bandidos têm (ainda?) na justiça e no devido processo legal os mecanismos para fazerem seus julgamentos.

Dr. Manoel Paz Landim
(Cardiologista, Mestre em Medicina pela FAMERP, Preceptor e Médico do Ambulatório de Hipertensão do Departamento de Clínica Médica da FAMERP, São José do Rio Preto)

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