Se lembrarmos Santo Agostinho, para quem pecado é o “mau uso da liberdade para produzir em si seu próprio conceito de bem, se afastando de Deus” podemos dar adeus ao paraíso e comprar nossa passagem para o inferno

A inveja não é o melhor dos sentimentos, mas como não invejar os heróis? O problema reside em escolher o herói certo pra invejar. No final dos anos oitenta, quando a internet ainda não tinha tornado possível acompanhar e interagir em tempo real com tudo que acontece nos lugares mais distantes, só existiam duas classes de pessoas capazes de conhecer o mundo: os milionários e intercambiários do Rotary. Como ter dinheiro não é escolha, os rotarianos eram os heróis certos para invejar.
Hospedar estrangeiros era meio caminho para se tornar celebridade. As casas rotarianas tinham iluminação e cheiro peculiares como os templos. Ser amigos de rotariano garantia passe livre para frequentá-las e saber se gringos tomavam banho todo dia, se comiam ovos com bacon pela manhã e se todos passariam a falar inglês automaticamente. Mas, existem heróis até entre os heróis. Eram os afortunados que recebiam as gringas. Aqueles que abrigavam na própria casa uma princesa de olhos verdes e pele de leite. Qualquer candango se transformava em Superman. A questão aqui era saber se elas eram tão liberadas quanto se dizia.
Vamos repetir: “A inveja não é o melhor dos sentimentos”, mas como fugir dessa tentação? Talvez por isso ela seja considerada pecado. Se lembrarmos Santo Agostinho, para quem pecado é o “mau uso da liberdade para produzir em si seu próprio conceito de bem, se afastando de Deus” podemos dar adeus ao paraíso e comprar nossa passagem para o inferno. Um texto antigo já lembrou ser mais complicado fazer diagnóstico de doenças psíquicas entre religiosos, exatamente porque ao se admitir a presença de inveja, exacerbam-se os mecanismos de projeção e transferência psicótica (Am J Psychoanal.1988 Spring;48(1):43-55. doi: 10.1007/BF01252921).
Só que ninguém deve ter tido inveja daquele garoto de Osasco, que foi enganado por uma falsa promessa de intercâmbio na França. O coitado nem pisou nas terras de Brigitte Bardot. Só perambulou pelos aeroportos do Chile, Peru e Colômbia, em intermináveis conexões, sem banho e sem comida, até ser salvo pela vaquinha feita por amigos para poder voltar pra casa. Esse candidato foi exposto à criptonita antes de vestir capa, sem galgar degraus de heroísmo.
O melhor caminho é resignar-se. Quem não ficou milionário, nem entrou para o Rotary, contente-se em admirar o estrangeiro pelas telas ou me acompanhe pelos círculos mais profundos do inferno, pois ainda invejo o herói que hospedou uma loira espetacular em sua casa, gabando-se de vê-la andar de baby-doll pela casa e ir para seu quarto tão logo caísse a noite, só porque de medo das onças e índios que habitavam o interior do Brasil, como diziam lá na sua terra.

Dr. Manoel Paz Landim
(Cardiologista, Professor
da FAMERP de São José do Rio Preto)

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