O consultório já havia completado 30 anos de atividade e vinha muito bem, até a clientela sumir. Não aconteceu nenhum erro diagnóstico, nem de tratamento, pois a debandada ocorreu por um boicote deliberado: o doutor usava uma estrela na lapela. Os anos de um trabalho exemplar, precedido pelo bom exemplo do pai, foram pelo ralo levar em consideração o bom nome que a família construiu cuidando bem das pessoas. Não significou nada o pai e o filho terem sido carinhosos e dedicados com cada paciente que entrasse e nem terem se destacado na vida social.
Fora do ambiente de trabalho, a vida comunitária do doutor sempre fora marcada pela ajuda aos mais necessitados e pela participação ativa na política do seu bairro.
De um dia para o outro aquela opinião conhecida pela prudência e conciliação, deixou de ser ouvida. O que saía da boca daquele bom profissional, bem como da de todos os outros companheiros que também usavam a estrelinha, passou a ser encarado como endosso de bandidos.
O mesmo signo que marcou as suas ações sociais agora era a chave para a discriminação. O doutor foi excluído até das obras que colaborava financeiramente. Nem seus recursos eram benvindos. Ninguém queria nada com “aquela gente”, exceto vê-los partir para bem longe.
As rodas de conversas, a troca de ideias e as reuniões com amigos foram proibidas. A estrelinha solitária era uma lepra que contaminava e que – por isso – precisava ser extirpada. Todos que não compactuassem do que era pregado nas igrejas e que não aceitassem as ideias conservadoras que serviriam de base para a nova nação que deveria surgir, eram sumariamente excluídos.
Alguns foram até obrigados a procurar outros lugares para morar. A estrelinha não podia brilhar naquelas terras, pois as cores que tremulavam nas bandeiras não podiam ser maculadas por opiniões contrastantes.
Uma nova pátria se formava e nela não haveria lugar para os velhacos de sempre, afinal a corja de estrelinha na lapela só pensava em aumentar o seu poder. Do lado dos patriotas estava a história, provando que eles todos eram um bando de ratos.
A turba à qual o doutor pertencia era contrária até mesmo ao glorioso exército, o mesmo exército que já desmascarara um capitão de nome estrangeiro traindo a pátria. Os cidadãos de bem haveriam de tomar cuidado. O futuro das famílias estava em jogo.
Não! Essa história não se passa no Brasil do século XXI, mas na Alemanha dos anos 30. A estrelinha não é vermelha de cinco pontas, mas azul de seis (conhecida como “de Salomão”) e a corja à qual o texto se refere não pertence a nenhum partido político. São judeus perseguidos por falsos dogmas que atentam historicamente contra eles e por costumes diferentes de quem queria a pátria baseada em princípios nacionalistas, excludentes, homofóbicos, intolerantes e xenofóbicos. O capitão de nome estrangeiro era Alfred Dreyfus, mas esse médico da historinha é ficcional, apesar de representar os profissionais que não podiam trabalhar por não serem arianos. Não falamos de verde-amarelo contra vermelho, mas do “Judenboykott”, ou boicote aos judeus. As coincidências são propositais, embora apenas a burrice do século XX seja a mesma do século XXI.

O capitão de nome estrangeiro era Alfred Dreyfus, mas esse médico da historinha é ficcional, apesar de representar os profissionais que não podiam trabalhar por não serem arianos

Dr. Manoel Paz Landim
(Cardiologista, Professor da FAMERP de São José do Rio Preto)

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